AS LETRAS DO INTERIOR: INTERIOR

Carne Doce
5 min readJan 6, 2021

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Olá, todo mundo!

Deu uma vontade de falar mais profundamente sobre as letras no nosso último disco, Interior, e de usar melhor esse Medium. Percebi que aqui só falamos de Temporal, a primeira faixa, e que mesmo nas entrevistas e nas postagens que fizemos ano passado eu disse muito pouco sobre esse processo, então aqui vou eu.

Quando comecei a escrever Interior, a letra mais esperançosa do disco, os primeiros versos que me surgiram eram na verdade terrivelmente depressivos. É um assunto que eu domino, já fiz algumas letras sobre as primas depressão e ansiedade, e mesmo quando não eram o tema principal, esses sentimentos me inspiraram muitas vezes. Tanto que sinto que essa minha habilidade é uma das principais marcas da Carne Doce (quem nos escutou pouco reclama que é o erotismo, mas nossos fãs sabem que é a melancolia). Quando ouvintes comentam que algumas músicas nossas os fazem sentir tristes e jocosamente reclamam que dão “gatilho” eu até tenho um certo orgulho e prazer, pois fica subentendido aí também que sentem a beleza, a poesia, que é um tipo de dor que gostamos de contemplar. Dentre essas que parecem doer do jeito certo temos o que considero “sucessos” como Clichê Deprê, Amiga, Comida Amarga…

Por causa dessa facilidade de escrever sobre a dor eu geralmente permito que minha inspiração flua mesmo quando a ideia me parece a princípio assustadora ou “errada”, geralmente a sigo até o fim para decifrá-la, ir fundo, desfiar o nó, a trama, descobrir a “solução” do “problema”. Algumas vezes pode estar nisto a possibilidade de ser bem sucedida: ser teimosa. Mas foi diferente aqui. Eu já escrevi “quero morrer” antes, gosto de ser explícita, e esses novos versos que se tornariam Interior eram também diretos e simples, mas eram muito mais tenebrosos. Me assustei com o que escrevi, tive medo por quem lesse aqueles versos, senti que já conhecia aonde daria aquele fim, era só mesmo o fim. Senti um impulso enorme em fazer o contrário, em ir na direção oposta, para a outra ponta.

“What wouldn’t you do?”; “Reverse; “Go to an extreme, move back to a more comfortable place”
“What wouldn’t you do”; “Reverse”; “Go To an extreme, move back to a more comfortable place”

Foi difícil e desconfortável encontrar versos para o desejo de recomeçar, para o sentimento de esperança, de fé. Esse é um tema novo para mim enquanto letrista, e um tanto estranho enquanto pessoa que não é religiosa e que se acredita muito racional. A primeira parte carregava uma enorme ansiedade, pedia uma resolução urgente e positiva, não à toa eu tive que ter paciência e esperar bastante para encontrar esse refrão, e não à toa coloquei uma segunda pessoa a dizê-lo, não acreditaria nele se não fosse assim, e não acreditaria que acreditariam nele não fosse assim. Achei a mensagem que eu precisava, mas ainda assim sinto que a letra continuou triste, como se mantivesse a consciência de que aquele fim terrível seguisse na outra ponta. Mais do que esperança ela inspira resignação, resiliência (que sei que está na moda, mas acho mesmo uma palavra bonita e triste).

Achei a mensagem que eu precisava para a letra e para mim pessoalmente também. Depois da letra pronta veio a pandemia me ensinando não só que me faltava mesmo esse amparo espiritual, mas que também eu ainda não conhecia a ansiedade como eu imaginava. Todos tivemos de aceitar parar, ficar, esperar, ter paciência, aceitar que não dava para ir embora e seguir adiante. Como muita gente tive minhas primeiras crises de ansiedade ano passado. Em momentos assim, ser racional mais atrapalha que ajuda, é preciso essa segunda pessoa, que pode ser até você mesma se consolando com essa mensagem de fé, iluminando o caminho com uma esperança qualquer... e, sim, às vezes essa mensagem vem numa música! E foi uma alegria especial saber que “Interior” teve mesmo esse efeito terapêutico para outras pessoas. Já havia percebido essa capacidade de oferecer conforto compartilhando a dor, e dessa vez consegui oferecer esse conforto compartilhando algo diferente. (Foi o caso por exemplo da Andressa, que me emocionou com esse relato que ela fez para o programa Som a Pino, escute aos 12min20s).

Apesar de não ser religiosa, gosto e me emociono com obras que tenham essa carga. Durante a pandemia li Crime e Castigo, que ensina algo justamente sobre essa questão da racionalidadeXreligiosidade. Como outros personagens de Dostoievski o herói é ruminativo, muito racional, e seu sofrimento é pior quanto mais ele rumina e racionaliza. (Spoiler) E sua “salvação” acontece não por uma ideia, ou pela razão, mas por uma iluminação qualquer, por uma esperança não racional, não feita de conclusões e idéias lógicas, uma inspiração íntima e espiritual de querer viver, viver, viver…

Interior só passou a se chamar assim no final. E num processo diferente dos anteriores, foi o disco que deu nome à música e não o contrário. Decidimos o título do álbum antes de terminarmos de compor as músicas. No final das contas, essa letra parece que também se encaixou bem no sentido territorial da palavra, nós do interior precisamos esperar mais por tudo, precisamos cultivar mais a paciência e também um certo sentido espiritual de resignação e resiliência. (Salma)

*Os cartões que ilustram o post são parte de um conjunto chamado “Oblique Strategies — Over One Hundred Worthwhile Dilemmas”. Criado por Brian Eno e Peter Schmidt, em 1975, reúnem dicas diversas (às vezes até opostas) para estimular a criatividade. As fotos foram postadas por usuários diferentes no twitter.

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LETRA:

Se a hora chegou
Se até passou da hora
Se a saída agora
É ficar pra poder ir embora
É parar pra seguir adiante
Mesmo imóvel você é constante
E o seu coração continua

Ah! já estou perto de te alcançar, lá
Vê, o horizonte sempre espera você
Crê, tudo é espera em todo lugar, mesmo lá
Pois só o caminho é o que te pode inspirar e curar

Vê, o horizonte sempre espera você

Crê, tudo é espera em todo lugar, mesmo lá

Pois só o caminho é o que te pode inspirar e curar

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